2011-02-13

Al-Jazeera Express #3 (ou "Um comentário anti-imperialista")

 Emillio Morenatti/AP (The Guardian)
«(...) Talvez venha aí a democracia. E seria uma lição extraordinária. Uma lição, antes de mais, para os que sempre encontram nas culturas alheias a incapacidade de viver em liberdade. Enganam-se, como deviam saber. Todos os povos têm uma sede natural de liberdade. Uma lição para os que acreditaram que a democracia só podia nascer como ato civilizador do Ocidente. À bomba, se preciso fosse. Como se a liberdade não tivesse de ser sempre uma conquista.
Todos se lembram da teoria do dominó. A intervenção militar no Iraque faria nascer ali uma democracia. E a partir daquele exemplo os vizinhos, maravilhados com tamanho feito, se converteriam à democracia entregue a casa e fabricada em gabinetes de Washington. (...) Sabemos que nada disso aconteceu. Apenas morte e ódio. A conclusão seguinte foi a única que estava à mão: aqueles povos não foram feitos para a liberdade.
Pois o efeito dominó aconteceu. Não a partir do Iraque. Começou na Tunísia. Da única forma que pode começar. Pelas mão do seu próprio povo. E alastrou para o Egito, para a Argélia, para a Jordânia, para o Iémen. Não foi graças à intervenção de nenhum libertador externo. Pelo contrário, foi contra os seus aliados de sempre. (...) E são atacados pelos socialistas, os mesmos que tinham, na sua Internacional, a companhia de Mubarak e Ben Ali. Enquanto os egípcios se libertam do ditador, arriscando a sua vida, a Europa e os EUA envergonham-se da sua própria hipocrisia.
Todos os povos, mais tarde ou mais cedo, procuram a liberdade. E só a essa, conquistada por si e sem tutores, dão realmente valor. A praça Tahrir serve de lição. Não apenas aos que sofrem a opressão de outras ditaduras - de Havana a Teerão -, mas aos que julgam que a democracia se exporta à bomba, contra a vontade dos que devem construir.»


 O texto do Daniel Oliveira está muito bem escrito e toca num ponto que, não sendo o mais óbvio desta revolução, é um dos mais importantes: o facto do Egipto, e também a Tunísia, servirem de exemplo de libertação de um país governado de forma totalitária. Sem violência, sem militarismos cegos e sem pressões internacionais óbvias, os egípcios fizeram uma revolução que é só sua; feita pelas suas mãos e pelos seus meios, com os seus heróis. Aliás, a haver pressão internacional, esta teria sido no sentido do apoio ao regime de Hosny Mubarak que muito útil era às políticas concertadas entre EUA-Israel, para a região. Com o suor e a determinação próprios de uma população que se cansou de ser esmagada na sua dignidade, os activistas pró-democracia (inicialmente, os jovens das camadas mais urbanas) foram sensibilizando e alastrando as suas motivações aos diferentes sectores da sociedade, acolhendo-os no seu movimento até conseguirem o amplo apoio que lhes permitiu, ao fim de 18 dias, o derrube de Mubarak. Uma persistência tal que obrigou as próprias Forças Armadas, afectas ao regime,  a colocarem-se do lado das suas reivindicações.

Quero aqui destacar alguns pontos:

- Esta revolução pode servir de contraponto a outras lutas à maneira americana, "for freedom and democracy" (o chamado 'imperialismo'): atente-se aos casos Iraque e Afeganistão (entretanto  desmascarados e infinitamente prolongados). Com as devidas distâncias para com os referidos casos, como refere o Daniel Oliveira o Egipto transformou-se a partir de dentro, pela vontade colectiva e mobilização da sua própria população ("povo" é uma expressão que enjoa), e não por intervenção militar estrangeira. A mudança fez-se primeiro enraizar nalguns sectores das classes mais educadas, alastrando depois às restantes classes sociais. Sem milhares de mortos, famílias desalojadas, resistência ao "invasor". Tentemos por momentos imaginar o que teria sido um 25 de Abril imposto a partir de fora...

- Esta revolução deu-me nojo. Deu-me nojo ver a Suíça congelar todos os bens do ditador Mubarak, no dia em que este é derrubado. Deu-me nojo verificar que só passados 30 anos de denúncias, os líderes mundiais tenham prestado atenção ao que acontecia no Egipto. Vemos agora o mundo inteiro solidarizar-se com os milhões de egípcios que, durante anos, foram ignorados e viram o seu ditador ser recebido com honras de estado por grandes "estadistas" como Tony Blair, agora com as mãos manchadas de sangue.
 E como Blair teve o seu grande amigo Mubarak (talvez agora já só seja ex-amigo), também Sócrates tem o seu personal dictator. Chama-se Muammar Kadafi e é o "proprietário" de um país chamado Líbia. O que aconteceu no Egipto podia ter acontecido na Líbia e mal podemos imaginar quais serão as desculpas que Sócrates apresentará no dia em que Kadafi for enxotado do seu trono imperial. A grande diferença entre os grandes estadistas e aqueles não o são, é também a forma como se batem pelos seus princípios e pela capacidade de se revoltarem contra os que atentam aos direitos humanos. E neste caso, o princípio da decência (expressão brilhante usada pelo Pedro Mexia) é algo que não existe na postura internacional do Governo Português.  Porque quem cala consente. (curioso, o facto de ao fim de algumas décadas, a Internacional Socialista ter-se decidido pela expulsão dos partidos de Mubarak e Ben Ali, apenas uns dias depois ao seu derrube)

- Há cerca de um ano atrás, Manuel Maria Carrilho era demitido do cargo de representante permanente de Portugal na UNESCO. Meses antes havia recusado obedecer à indicação de voto do Governo Sócrates para uma eleição do mais importante cargo diplomático na UNESCO. Essa indicação de voto era para votar num diplomata egípcio ligado ao regime e conhecido, entre outras coisas, por ter defendido a queima de milhares de livros israelitas em arquivo nas bibliotecas egípcias. Foi, assim, o primeiro a não pactuar com a hipocrisia ocidental e com esta peculiar forma de liberdade do regime Mubarak.

- O Exército egípcio prometeu já "a transição pacífica para um poder civil eleito". A cumprir-se, é o primeiro sinal positivo após a revolução.

- A afirmação da Al-Jazeera como mais importante meio de comunicação social no Médio Oriente. Por estes dias, ver a Al-Jazeera era estar no centro dos acontecimentos, estar lá na Praça Tahrir, onde mais nenhuma estação chegou. Longe vão os tempos em que a estação qatari era militantemente acusada pelos media americanos de ser a estação de propaganda da Al-Qaeda. É bom poder ver, finalmente, especialistas em Médio Oriente que são efectivamente do Médio Oriente.

- Depois da Tunísia e do Egipto, a dinâmica contestatária estendeu-se já ao Iémen e à Argélia, onde os manifestantes começaram já a ser reprimidos pelas forças policiais. A coragem também contagia e dá o exemplo.

- Israel foi o único país a levantar reservas a uma possível mudança de regime, "esperando" sempre que "o novo regime não venha a afectar as relações com  Jerusalém". Postura inteligente, não vá um Egipto democrático reconhecer o direito à existência do estado palestiniano e levantar as restrições acordadas com o governo israelita com o intuito de manter na miséria toda a Faixa de Gaza.

Se quiserem saber mais sobre o assunto, podem sempre ver aqui o Jorge Goulão, ainda as manifestações iam no seu início. Ou o Jorge Almeida Fernandes, no Público, com a análise ao pós-revolução e falando do "primeiro processo significativo de auto-determinação da cidadania árabe". Uma coisa é certa, esta revolução condenou já todos os partidos a considerarem apenas uma opção de futuro: um regime democrático. Quer ele aconteça, quer não.
«(...) Wael Ghonim, antes de twitar: “Bom dia Egipto! Senti a tua falta nos últimos 30 anos!”»

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